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domingo, 11 de outubro de 2009

Quem me roubou de mim


Trechos do Livro Quem me roubou de mim, autoria Pe. Fábio de Melo, vale a pena ler o livro na íntegra, mas aqui posto os trechos mais relevantes para o meu momento. By Rafa.

A subjetividade refere-se a esta capacidade que o ser humano tem de ser singular. Antes de ser comunidade, o ser humano é pessoal, particular, reservado, privado, porque segue a mesma regra do mosaico. Se junta aos outros para compor o todo, mas não deixa de ser o que é. Instigante. Ser o que somos requer cuidados. Não é possível ser somente na solidão. O singular é tocado o tempo todo por outro singular e assim nascem os encontros. Toda relação é um encontro de subjetividades. A vida é feita desses encontros. A grande questão que precisamos ter diante de nós é a seguinte: nos encontros que realizamos, como é que fazemos para não perder de vista o que somos? Como viver a dinâmica de um mundo que é plural, sem que nossa subjetividade corra o risco de ser sufocada, seqüestrada? O desafio é constante. O risco é iminente. É muito fácil perder a liga existencial, o cordão que nos costura a nós mesmos. É muito fácil a gente se perder na pluralidade do mundo. É muito fácil entrar nos cativeiros dos que nos idealizam, dos que nos esmagam, dos que nos desconsideram, dos que pensam que nos amam, dos que nos viciam, dos que pensam por nós. É muito fácil ser roubado, levado e aprisionado no pensamento que nos impede de crer no valor de nosso potencial. Os cativeiros são muitos, diversificados, mas a dor é semelhante. É a dor de quem está compondo o mosaico sem saber o que é. Entrou no todo, mas não tomou posse da parte. Misturou-se ao mar, mas não sabe o no que é. Subjetividade esmagada, desagregada, seqüestrada. Há prisões que são mais que paredes e celas. Há prisões que não são concretas, e por isso não há nada que possa concretamente ser quebrado. É seqüestro da subjetividade quando alguém, no exercício de imaginar, projeta o outro como personagem, e com ele estabelece uma relação baseada na falsidade que despersonaliza e aprisiona. Jura a promessa de um amor eterno que se desdobra em cruel forma de prisão.

ALGUÉM
Alguém me levou de mim Alguém que eu não sei dizer
Alguém me levou daqui.
Alguém, esse nome estranho.
Alguém que eu não vi chegar
Alguém que eu não vi partir
Alguém, que se alguém encontrar,
Recomende que me devolva a mim.

O outro exige o que não é direito seu exigir. Ultrapassa os limites que deveriam ser preservados e pisa com pés sujos a dignidade que merece reverência, porque é sacral. O imundo é o lugar dos desumanizados. E fácil viver esse
projeto, não requer muito esforço. A santidade, o aprimoramento, requer
coragem. A desumanização requer fraqueza. E mais fácil ser fraco. É mais fácil
justificar-nos na preguiça existencial que nos aquieta nas expressões que são
próprias de quem já perdeu a batalha. "Sou assim mesmo e não quero mudar!"

"Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada." (Poema intitulado "No caminho com Maiakovski". O poema é atribuído a Bertolt Brecht, mas a autoria é de Eduardo Alves da Costa.)

Na condição de ser primeira morada do mundo, cada ser humano traz em si o dom de transformar o mundo inteiro, mas isso só será possível se ele viver o constante desafio de não perder-se de si mesmo. O processo é sempre assim. O seqúestrador afasta sua vítima de tudo o que para ela representa segurança. Quanto maior a insegurança, maior será o seu domínio. Seqüestradores são especialistas em nos fazer esquecer nossos portos seguros. Ao seqüestrado resta pouco. Terá que se acostumar com a comida qualquer, com o cativeiro qualquer, e depois com uma vida qualquer. Representar o papel que o outro escreveu é o mesmo que abdicar do direito de escrever a própria história, o próprio enredo. É permitir que a máscara seja colada na cara, ocultando assim o que se é.
O processo de agregação possibilita ao ser humano o crescimento de seu horizonte de sentido. Tornamo-nos mais ricos com a presença dos que nos agregam. Relações saudáveis são relações que nos devolvem a nós mesmos — e, o melhor, devolvem-nos melhorados. O outro, ao passar pela nossa ida, encontra-se com nossa subjetividade. Ao estabelecer conosco uma relação, ele está nos permitindo adentrar o seu território subjetivo. Esse encontro faz surgir uma terceira pessoa, o nós. Respeitadas as subjetividades, isto é, as pessoas não deixam de ser elas mesmas, o encontro humano alcança o seu poder de integrar as partes, entrelaçando-as sem que elas se confundam. O amor talvez seja isso. Encontro de partes que se complementam, porque se respeitam. E, no ato de se respeitarem, ampliam o mundo um do outro. O recém-chegado não tem o direito de reduzir o mundo de quem se deixou encontrar. O amor não diminui, mas multiplica. As caricaturas do amor são prejudiciais porque fazem absolutamente o contrário. Diminuem o horizonte, restringem, aprisionam, sequestram. Em nome do amor, cometemos atrocidades. Amarramos os outros em nós, porque nos equivocamos na compreensão do que consideramos ser amor. Amar não é fazer do outro nossa propriedade. Ninguém é tão completo que seja capaz de preencher totalmente as necessidades do outro. É absurdo pensar que nós possuímos todos os elementos de que o outro precisa para o seu crescimento.

PEDIDO
Eu não quero que você seja eu
Eu já tenho a mim.
O que quero é que você chegue
Com seu poder de chegar
E de me devolver pra mim.
Que você chegue com seu dom
De também me fazer chegar
Perto de mim...
Pra me fazer ver o que sou e que só você viu.
Pra eu ser capaz de amar também
O que só você amou.
Eu não quero que você seja igual a mim.
Eu já tenho a mim.
Não quero construir uma casa de espelhos
Que multiplique minha imagem por todos os cantos.
Quero apenas que você me reflita
Melhor do que julgo ser.

O autoconhecimento é condição irrenunciável para uma existência feliz e realizadora. É por meio dele que a pessoa alcançará o instrumental de sua realização, visto que ele é desvelamento de possibilidades e limites. Nenhuma realização é possível quando se desconsideram os elementos constitutivos da sua condição. Ser humano é poder, mas também é carecer. Se por um lado temos as possibilidades, por outro temos as carências. Só o amor faz ser livre, porque ele quebra os cativeiros que nos aprisionam. Ele tem o dom de devolver a liberdade, e por isso não há experiência de amor fora da liberdade. Ninguém pode ser amado e ao mesmo tempo ser mantido cruelmente na prisão. Não podemos acreditar no amor de quem nos aprisiona e nos mantém em cativeiro. Se quiser nos amar, se quiser fazer parte de nossa vida, terá que ter diante dos olhos o que somos, o que ainda podemos ser, e não o que ele gostaria que fôssemos. O amor só acontece quando deixamos de imaginar. Só a realidade autentica o amor, demonstra sua verdade. Essas são as pessoas que nos ajudam a conquistar o que não sabíamos possuir. Elas nos mostram o avesso de nossa realidade, porque o amor é uma espécie de lente que amplia nossa autopercepção. O olhar de quem nos ama é um olhar que nos devolve, abre portas. Por outro lado, se não somos amados, corremos o risco de sermos roubados de nós. Corremos o risco de nos tornar vítimas nas mãos dos outros e de sermos fechados nas estruturas minúsculas de um cativeiro. Uma coisa é certa: quanto maior é o bem que nos provocam, maior é o desejo que temos de ficar por perto. O desejo sobrevive assim. O outro nos apresenta um jeito novo de interpretar o que somos, e por essa nova visão nos apaixonamos. O que nos encanta no outro é o que ele nos conseguiu fazer enxergar em nós mesmos. Egoísmo? Não. Apenas o primeiro pilar do conceito de pessoa alcançando uma profundidade ainda maior dentro de nós. Retomemos a reflexão de Martin Buber. O que gostamos no outro é o que sobra do encontro que realizamos com ele. E a terceira pessoa, é o que nasce do encontro. Podemos dizer que esta terceira pessoa, que chamamos de "nós", quando desejada, tem o poder de nos fazer permanecer. Precisamos entender que não existe ser humano ideal. O que existe é o ser humano certo. O ser humano ideal não possui defeitos. ser humano certo tem defeitos, qualidades, e na soma de tudo é um resultado em que você resolve acreditar. Uma coisa é certa: nós sabemos quem somos, mas os outros nos imaginam. Essa frase expressa bem o processo de inadequação a que anteriormente nos referíamos. No ato de imaginar, o outro constrói a pessoa ideal, e essa pessoa ideal não existe, pois o próprio conceito já nos diz. Ideal só existe na idéia. E por isso que as relações humanas são como pontes. Estamos sempre em travessia. Há sempre uma distância a ser percorrida, um passo a mais a ser dado no conhecimento do outro. Sejam quais forem as respostas, não tenha medo delas. Mais vale uma verdade amarga que tenha o poder de nos fazer crescer do que uma mentira adocicada que nos mantenha acorrentados no cativeiro da ignorância. Hoje é dia de resgate. A porta já foi aberta. E só sair.


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